Bom Dia SC – Em primeiro lugar, a vida de Ney Matogrosso, um dos artistas mais singulares da música popular brasileira, configura-se, por si só, em espetáculo cinematográfico. Dono de uma presença cênica incomparável, voz aguda inconfundível e trajetória marcada por ousadia estética e política, Ney tem sua história contada, reinterpretada e celebrada através do cinema, seja em documentários, cinebiografias ou registros audiovisuais de sua carreira. A cinebiografia, nesse contexto, não apenas narra sua vida, mas revela a complexidade de um artista que desafiou padrões e encarnou, no palco e fora dele, a liberdade em sua forma mais visceral.
Destarte, Ney de Souza Pereira nasceu em 1º de agosto de 1941, em Bela Vista, Mato Grosso do Sul. Cresceu em um ambiente conservador, marcado pela rigidez militar — seu pai era oficial da aeronáutica — e pela moral patriarcal da época. Desde jovem, Ney percebia seu descomo com os papéis sociais impostos aos homens, principalmente no que dizia respeito à masculinidade. Essa fricção entre o indivíduo e as normas sociais se tornaria um dos principais motores de sua arte. Aos 19 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde começou a experimentar o teatro, a dança e a música, moldando a persona artística que logo se tornaria nacionalmente conhecida.
De outro vértice, o ponto de virada veio em 1973, quando Ney assumiu os vocais do grupo Secos & Molhados. Com maquiagem teatral, roupas andróginas e “performances” intensamente sensuais, Ney rompeu com os padrões visuais da música brasileira da época.
A sua figura nos proscênios, carregada de erotismo e rebeldia, chocava e fascinava ao mesmo tempo. O sucesso foi estrondoso: o primeiro disco do grupo vendeu mais de um milhão de cópias, feito inédito para um álbum de estreia no Brasil. A partir daí, Ney embarcou em carreira solo, consolidando-se como artista completo, que mesclava canto, atuação e dança com ousadia estética e política.

Ney Matogrosso – Homem com H
O cinema brasileiro capturou esse magnetismo de diferentes formas, sendo a principal delas o documentário “Ney Matogrosso – Homem com H” (2003), dirigido por José Eduardo Belmonte. A produção é um retrato íntimo do artista, que, em primeira pessoa, conduz o espectador por sua trajetória, marcada por transgressão e resistência. O filme não se limita a uma cronologia biográfica; ele opta por uma narrativa poética, costurada por imagens de arquivo, cenas de “shows” e reflexões do próprio Ney sobre temas como sexualidade, repressão política e liberdade artística. É, portanto, uma cinebiografia que se recusa a domesticá-lo, respeitando sua complexidade e fluidez.
Outro projeto importante é o documentário “Vento Divino”, lançado em 2022 e dirigido por Felipe Nepomuceno. A obra mergulha ainda mais fundo na espiritualidade do artista, propondo uma experiência sensorial em que Ney aparece como uma entidade em constante transformação. O filme mistura entrevistas, imagens raras e uma trilha sonora pulsante, criando um retrato menos narrativo e mais impressionista — uma espécie de pintura em movimento que evoca o espírito livre de Ney. O artista, já septuagenário, reflete com lucidez sobre sua carreira, envelhecimento, memórias e a persistente luta por autenticidade em um mundo que ainda tenta impor regras rígidas de comportamento.
De outro lado, essas cinebiografias — e aqui entendidas num sentido ampliado, que inclui documentários — têm o mérito de não encaixotar Ney Matogrosso em um molde fixo. Ao contrário, mostram-no como um ser plural, múltiplo, inquieto. Se o documentário tradicional costuma recorrer a uma linearidade confortável, as produções sobre Ney tendem a romper com essa lógica, justamente para estar à altura do retratado. Há, assim, uma relação estética entre o sujeito filmado e a linguagem cinematográfica que o representa.
Essa escolha revela não apenas o respeito dos diretores por sua figura, mas também um entendimento profundo de que Ney Matogrosso é, acima de tudo, um corpo em movimento — no tempo, no espaço e na arte.
Ademais das produções centradas em sua vida, Ney também participou de diversos filmes como ator ou cantor convidado, contribuindo para a expansão de sua imagem no imaginário audiovisual brasileiro. Em “Rock Brasília: Era de Ouro”, de Vladimir Carvalho, sua figura surge como um símbolo de uma geração que ousou desafiar o conservadorismo. Ney também aparece em registros históricos de shows e festivais, compondo uma iconografia vasta, que tem na câmera um aliado para a eternização de sua presença cênica.
Por conseguinte, a cinebiografia de Ney Matogrosso vai além do simples registro factual. Ela é um exercício de liberdade narrativa, um gesto político de afirmação da diversidade e uma celebração estética de um dos maiores artistas da cultura brasileira.
Em epítome, Ney reptou regime de exceção, adversou homofobia, rompeu convenções de gênero e, sobretudo, nunca desistiu de ser quem é.
Por final, sua vida, encenada com coragem e beleza, encontra no cinema um palco onde continua a dançar — livre, provocador e absolutamente necessário.
Prof. Dr. Adelcio Machado dos Santos
Jornalista (MT/SC 4155)